A
Simbologia da Peneira na cultura Macua
Na cultura
macua, alguns objectos, para além do seu carácter utilitário, assumem valores
simbólicos que devem ser dominados por homens e mulheres, sendo os ritos de
iniciação o momento privilegiado para essa aprendizagem. A peneira constitui um
bom exemplo da riqueza simbólica que esta cultura encerra e que importa
observar.
A
cultura macua é ainda pouco conhecida e, no entanto, apresenta-se como bastante
rica em termos da simbologia atribuída a muitos objectos diários. Neste trabalho
quero dar o meu contributo para o conhecimentos de alguns dos símbolos da
peneira, a partir do que escutei e da realidade dos factos conhecidos e
observados nos ritos de iniciação. Não será, por isso, um trabalho exaustivo,
mas um levantamento dos principais aspectos.
A peneira, denominada em macua ethekwa, é um utensílio feito
de tiras de bambu colhido nos baixios. As canas são expostas ao sol, para secar,
e dela são tiradas tiras, raspadas e alisadas nos nós, cortadas em função do
tamanho que o artesão quiser. Começa-se por entrelaçar o fundo da peneira,
terminando por fechá-lo com um arco de um pau especial, denominado muyepe, bem
raspado. Em seguida, cose-se com um tipo de arbusto chamado mutho ou
hururi.
A peneira é utilizada para vários fins, particularmente pela
dona de casa. Ela serve para transportar, armazenar e conservar produtos
agrícolas, frutos silvestres e outros alimentos. O nome vem, porém, da sua
função de separar os grãos (que ficam nos bordos) da farinha já moída (que
converge para o centro) de cereais como arroz, milho, mapira e mandioca. São, no
entanto, sobretudo os usos e valores simbólicos que atribuem à peneira o lugar
de relevo que ela ocupa na nossa cultura.
Na cultura macua, a peneira simboliza, antes de mais,
estabilidade no lar. Toda a casa tem peneira. Sem ela, um lar torna-se
dependente de outro, acreditando-se que a mulher passa, por isso, a estar
dependente da vizinha. Lar e mulher estão pois muito ligados à peneira, que
simboliza início da vida, ritos de iniciação, o centro da terra. Alguns dizem
ainda que a peneira simbolizava aves de rapina, como abutres, milhafres e
outras.
Nos ritos de iniciação masculinos, todos os rapazes aprendem a fazer uma peneira, o que revela o seu papel central na estabilidade futura do seu lar. Este aconselhamento, olaquiwa, ensina os rapazes a colocar as primeiras tiras do meio do fundo da peneira, chamado "o centro da terra". no final dos ritos, a peneira também está presente - no final da instrução, o mestre (nakano - conselheiro, em macua), coloca na peneira uma variedade de cereais, coloca-a na cabeça e começa a cantar, andando, seguido pelos rapazes, até a farinha desaparecer, o que marca o fim da cerimónia.
Nos ritos femininos, é ensinada a utilização da peneira como sinalização. Em vez de comunicarem verbalmente ao marido o seu período menstrual e a sua indisponibilidade, a mulher deve pegar a peneira e tapar um dos cântaros e atravessar por cima o remo (pau que amassa a caracata (farinha de mandioca).
Se iniciados, os maridos logo entendem. Uma determinada
colocação da peneira em casa pode, ao contrário, simbolizar a disponibilidade
sexual. Como iniciação à vida, o papel da peneira é também complexo.
No interior, quando uma criança tem cerca de 30 dias de vida,
é realizada a wakulelia muana. Trata-se de dar banho á criança com medicamentos
tradicionais, para ela poder sair de casa protegida. Depois desta cerimónia, o
recém-nascido é colocado na peneira e lançado aos quatro pontos cardeais,
autorizando-o, assim, a casar em qualquer dessas direcções.
No litoral, a criança é posta na peneira ao sétimo dia e
passada três vezes das mãos de uma pessoa dentro de casa para outra fora de casa
e vice-versa. Depois de um banho de água misturada com medicamentos
tradicionais, preparados no pilão, a criança está imunizada contra todos os
espíritos.
Se uma criança se atrasa nos primeiros passos, os pais solicitam ajuda ao cunhado, napwera (que significa aquele com quem o pai brinca). Este coloca a criança numa peneira e arrasta-a, dando voltas pela casa. Quando pára, dirige-lhe alguns nomes. Passados alguns dias, a criança começará infalivelmente a andar, com a pressão do movimento simbolizado pela peneira.
Se aparece ligada à vida, também está presente na morte, pois
é da tradição que seja usada a peneira quer para abrir a cova da sepultura, quer
para lançar a terra que a tapará.
Os rituais de magia são outro dos campos em que está presente a peneira. Quando a mulher abandona o lar, os curandeiros oferecem medicamentos tradicionais ao marido, sivela (que significa gostar), que este deve colocar na peneira, processo que será repetido por três dias. No fim destes, o coração dela começa a palpitar duma forma anormal e surge o desejo de voltar a casa. É por tudo isto que o padrinho nunca se esquece de avisar o seu afilhado quando este prepara a sua vida de casado: "afilhado, não fez nada ainda, pois falta peneira".
A simbologia é, pois, para nós bem diferente da da mentalidade ocidental, que concebe a peneira como a separação da fina flor, através de malhas cada vez mais apertadas, ideia aplicável às relações sociais ou às actividades pessoais.
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